quinta-feira, 27 de março de 2014

Frei Miguel da Cruz - Inquisidor


Frei Miguel da Cruz - Inquisidor


     De madrugada ao nascer do sol, saía um fumo espesso dos campos, e um inebriante mau cheiro vindo do rio tejo a fazer-se sentir entre o incenso dentro das igrejas.
     Os jardins do palácio da Ribeira eram palmilhadas por aparições, ditas por quem os podia ver entre as estátuas e bancos de pedra. Referidos pelos rústicos, a meretriz, o tecelão e o menestrel.
     Os frades rodeavam-se com os fiéis mais íntimos. Grupos de mulheres passavam o seu tempo em leitura de oração, aliviar os padecimentos da alma e os males do corpo. O único frade de boa saúde que professava igualmente a profissão de cozinheiro no mosteiro, de faces coradas do lume do braseiro da cozinha, limpava as suas mãos trémulas ao avental.
O mosteiro num dos seus cantos recatado com duas salas , davam apoio aos peregrinos , doentes e a todos que precisassem de mercês de hospedagem , na cura do corpo amparo das almas.
     Os médicos e os físicos aliviavam os achaques da população com unguentos, xaropes e clisteres.

     Frei Miguel da Cruz vivia com alucinações dos seus veredictos, actos de fé do tribunal inquisitorial por si aclamado. Ouvia os gritos dos que por si foram condenados. Com o corpo debilitado, mal andava a não ser a um desconforme de ritmo compassado. As Lagrimas corriam-lhe pelos cantos dos olhos com um fio de baba entre os lábios.
     Diziam os seus companheiros que o frei fora condenado por todos os judeus conversos, hereges, mouriscos, blasfemos e feiticeiras com a força do demónio a corroer-lhe o corpo aos poucos, sem que já conseguisse abrir a boca para pedir perdão.
     O frei ajoelhava-se lajeando o frio da igreja da Sé de Lisboa, com uma cruz entre os dedos a murmurar palavras entrecortadas!
     À noite ouviam-se as carpideiras a velarem os mortos, entoando as suas ladainhas em voz baixa. Estas que se dizia fazerem feitiços e encantamento no secreto sossego da noite.
      Desde que se tornara freire que enchia o peito de ar pondo-se em bicos de pé, arregalava os olhos na sua altivez com o rosto encarniçado, gritando para lhe serem solicitados os seus pedidos à divindade. Fraco com um copito de vinho a mais ou com o sangue vivo no rosto da aguardente de medronho que o anestesiava, e que ao segundo copo bebia a goles com as suas mãos tremulas, e a balbuciar.

     «O frei morreu tolhido das mãos que lhe tremiam tanto, que nem conseguia levar a sopa à boca. Morreu sozinho numa tristeza, sujo e roto». Como testemunhou o camareiro ao seu senhor. 

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